Professor Rómulo de Carvalho (António Gedeão)
Sendo uma das maiores referências portuguesas do séc. XX, no campo da Ciência e da Literatura, não poderia deixar passar em claro o centésimo aniversário do nascimento de alguém cuja obra muito admiro!
Grande figura intelectual, cientista, pedagogo e extraordinário poeta. A sua morte continua a ser um grande desafio para o futuro da cultura e ciência portuguesas
Rómulo de Carvalho sempre determinou lúcida e conscientemente a sua conduta.
O desencanto acompanhou-o desde muito novo, bem como a descrença na natureza humana, facto que o levou a valorizar, sempre e cada vez mais, a sua independência face a pessoas e instituições. Assim, apesar de sempre ter sido um animal político, nunca o manifestou publicamente, isto é: nunca votou, nunca aderiu a movimentos ou assumiu qualquer atitude política e pública. Apesar disso, colaborou, por exemplo, com Bento de Jesus Caraça, numa época em que o investigador era perseguido pelo regime; satirizou a ditadura em desenhos; e escreveu poesia, depois feita hino da libertação de um povo.
Perguntavam-lhe um dia em entrevista: Considera-se céptico?
Ele respondia: “Nem céptico nem anti céptico”. Referindo: “não se trata de uma atitude azeda. Antes o conhecimento dos outros pelo contacto com muitas pessoas e do passado através da História, a que me tenho dedicado com interesse. Reconheço defeitos nos seres humanos que não permitem o equilíbrio de uma situação social."
São dele algumas frases que continuam incomodamente actuais:
- "O homem de hoje faz tantas barbaridades como o das cavernas. Continua bárbaro como há milénios. O nosso progresso é todo técnico e científico."
- "Tanto me faz a monarquia como a república, como este ou aquele. Os homens são sempre os mesmos e tratam de defender os seus interesses."
Dado que as palavras serão sempre poucas, perante a dimensão deste Homem, aqui vão dois poemas retirados da fecunda obra deste notável professor, cientista, poeta e Homem do Mundo, a que me dispenso de chamar atenção para o seu significado.
Lágrima de preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.
Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Angulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.
Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.
Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valência de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home