quarta-feira, novembro 25, 2009

O quanto andámos, até aqui, para não sairmos do mesmo sítio…

(Um texto notável e de uma actualidade atroz)


" Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (...) Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta ate à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida intima, descambam na vida publica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na politica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (...) Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do pais, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, – como da roda duma lotaria. A justiça ao arbítrio da Politica, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...) vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, - de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar (...)"

Guerra Junqueiro*, in "Pátria", escrito em 1896


*Abílio de Guerra Junqueiro, nascido em Freixo de Espada-à-Cinte, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi um escritor célebre pela sua poesia anticlerical. Conseguiu, nas suas sátiras, algumas caricaturas que intensificaram a força dos seus versos. Alguns poemas mostram a visível influência da literatura francesa, nomeadamente de Victor Hugo.A sua obra mais conhecida, “A Velhice do Padre Eterno do longínquo ano de 1885, é uma sátira anticlerical contundente.Já no fim da vida, Guerra Junqueiro retirou-se para o campo, onde tem início sua evolução para um forte misticismo, caracterizado pela piedade e, quiçá, pelo arrependimento…